Crítico de Código

por Rachel Chalmers

John Lions escreveu a primeira, e talvez a única, crítica literária sobre o Unix, iniciando uma das primeiras batalhas legais sobre software aberto.


30 de Novembro de 1999.

Antes que houvesse uma Open Source Initiative, antes que a Free Software Foundation fosse sequer um lampejo no olho de St. iGNUcius, os hackers Unix estavam enfrentando advogados e interesses comerciais pelo direito de copiar e distribuir código fonte. A luta começou, em parte, devido as crenças de um professor australiando chamado John Lions, que pensava que ao tornar o código fonte disponível e usando o mesmo como uma ferramenta de ensino, ele poderia encoragar os mais altos padrões de programação possíveis. Com a aproximação do primeiro aniversário de sua morte, e o movimento open-source avançando mais e mais, parece que o momento é propício para recordar a contribuição de Lions.

Eu tropecei no livro de Lions em 1996. Sou especializada em literatura e parece que gastei toda minha vida procurando por um homem inteligente, culto. Quando finalmente eu encontrei o homem que veio a ser meu noivo, ele era um hacker Unix. Isto me desconcertou. Eu não conseguia sequer imaginar como o árido mundo super-iluminado dos laboratórios de computação e as salas com servidores zumbidores podia produzir alguém mais curioso e criterioso que meus colegas graduados das humanas. Então eu fiz o que sempre faço quando quero entrar na cabeça de alguém: examino suas estantes de livros.

Lá eu encontrei -- e devorei -- o hilário "The New Hacker's Dictionary", de Eric Raymond. Escrito a partir do Jargon, ele descreve uma cultura literária estranhamente parecida com a minha, completa, com movimentos, piadas, manifestos e Grandes Obras. E, falando de grandes obras, eu também encontrei nas prateleiras a primeira edição dos livros de Lions. Os livros -- uma obra em dois volumes com o título "Source Code and Comentary on Unix Level 6" -- não só incluia todo o código fonte do kernel do Unix Versão 6, mas também uma detalhada e algumas vezes genial discussão do mesmo escrita no meio da década de 1970.

A gênese dos livros de Lions está vinculada à tradição Unix, que começou 25 anos atrás, quando a revista Communications of the Association for Computing Machinery -- o equivalente tecnológico da Nature -- publicou um trabalho de Ken Thompson e Dennis Ritchie, os dois empregados da Bell Labs que criaram o Unix e a linguagem de programação C. O trabalho era chamado "The Unix Time-Sharing System", e incluía uma descrição do sistema operacional, uma justificativa de seu projeto e algumas notas sobre como ele foi montado a primeira vez. O artigo capturou a imaginação de muitos programadores, incluindo Ken Robinson, um professor da University of New South Wales (UNSW), que escreveu pedindo uma cópia do novo sistema operacional. Quando esta chegou, Lions, seu colega, leu o código fonte.

O código fonte é o projeto do software, como um conjunto de palavras que os humanos podem ler e usar para controlar as máquinas. Com o código fonte, um programador pode modificar uma aplicação, corrigindo bugs ou acrescentando funcionalidades. Mas a maioria dos softwares comerciais é vendido somente em uma forma que só as máquinas podem ler. Ter acesso ao código fonte é ter poder.

A carreira de Lions seguiu o caminho clássico para um acadêmico australiano de sua geração. Em 1959, ele foi graduado com honra na Sydney University e prontamente deixou o país. Obteve seu doutorado em Cambridge, em 1963, e gastou a década seguinte trabalhando para a Burroughs Corp., no Canadá e em Los Angeles. Em 1972 ele estava casado e tinha uma jovem família. Mudou-se de volta para a Austrália e assumiu uma posição como professor acadêmico sênior no departamento de computação da UNSW. Ele iria ensinar lá pelo resto de sua vida.

O código do Unix encantou Lions -- tanto que ele decidiu fazer alterações singificativas nas duas cadeiras que ensinava. Até aquela época, a maioria dos professores de sistemas operacionais orgulhosamente transmitiam os princípios gerais sobre programas que seus estudantes provavelmente nunca viram, ou encorajavam os estudantes a montar sistemas operacionais de brinquedo por conta própria. O Unix ofereceu uma terceira abordagem. Ele podia ser executado em um sistema comparativamente acessível, um Digital Equipment Corp. PDP 11 -- um máquina que a UNSW já possuía. O Unix era compacto e acessível, mas oferecia um conjunto excelente de funções. Para resumir, nas palaras de Lions, ele era "intrinsecamente interessante". O Unix pode ser lido e entendido com menos esforço que o sobrecarregado OS/360 da IBM, e o TSS/360 (que, ironicamente, são pigmeus pelos padrões modernos), mas ele possuía a funcionalidade de padrão industrial às quais nenhum brinquedinho feito em casa pode aspirar. Um estudante, Greg Rose, lembra-se, "John expressou isto com uma frase, 'O único grande programa que eles verão além dos que eles farão, pelo menos este foi bem feito'".

A primeira edição do livro de Lions era uma impressão de computador magra, coberta com um cartão vermelho, e com a estampa do brasão da UNSW. Sobre ela, o título "Unix Operating System Source Code Level 6", e "A Commentary on the Unix Operating System". Lions originalmente preparou o mesmo para seus estudantes, que ficaram atônitos com a disponibilidade do código fonte. Ali havia um sistema operacional inteiro que eles podiam colocar na palma da mão. "Toda a documentação pode ser transportada em uma pasta estudantil", notou Lions. Mais tarde ele faria uma piada, dizendo que as edições posteriores do Unix corrigiriam isto.

Os livros funcionaram. "Em geral, os estudantes pareceram achar os novos cursos um pouco mais caros, mas muito mais satisfatórios que os cursos prévios", observou secamente Lions. Seus estudantes descreviam as aulas como uma revelação. "Ele gostava de ver se algum de nós estava alerta o suficiente para perceber alguns dos poucos bugs ou as esquisitisses inexplicáveis no código conforme o líamos. Eu não acho que tenhamos conseguido isto com muita freqüência", lembra Lucy Chubb, agora presidente da Australian Unix and Open Systems Users Group (AUUG). "Uma leitura séria do código de outra pessoa era algo que ninguém mais nos deu".

Uma das grandes sacadas de Lions era que o que Thompson e Ritchie escreveram deveria ser estudado daquela forma. "Você percebe que a maioria do código no Unix é de um padrão bem alto", escreveu ele em uma introdução aos livros. "Muitas seções que inicialmente parecem complexas e obscuras, à luz de investigação e reflexão posteriores, parecem perfeitamente óbvias e 'a única forma de voar'".

O Unix era belo e útil e merecia uma atenção mais dirigida. Como o programador Peter Reintjes observou, "Conseguimos o que equivaleria a uma crítica literária do software de computador".

As implicações eram enormes. O código resumido e elegante de Thompson e Ritchie era um convite para investigar e experimentar. Agora um grupo de estudantes bem-treinados estava equipado para fazer justamente aquilo. "Melhoramentos feitos em instituições pelo mundo começaram a ser trocadas, e contribuíram de uma forma inegável para o crescimento do Unix", lembra Rose. "Estes dois volumes tornaram muito mais fácil começar com este tipo de experimentação, e contribuiu grandemente ao sucesso do Unix durante o final da década e 1970 e início da de 1980".

As novidades sobre a revolução acabaram chegando aos seus instigadores. "A primeira vez que Ken e eu ouvimos falar de John foi quando o original do livro 'Commentary' chegou, eu acho", comenta Ritchie. "Ficamos muito impressionados pela qualidade do trabalho e bastante lisonjeados pela sua existência". Lions trabalhou duro para entender o que Thompson e Ritchie estavam tentando conseguir. Na avaliação deles, ele teve sucesso. "Após 20 anos, esta ainda é a melhor exposição do funcionamento de um sistema operacional 'real'", falou Thompson.

Ainda que admirando as anotações de aula, Ritchie destaca mais os ensinamentos de John. "Provavelmente a contribuição mais importante que John fez foi iniciar, na UNSW e indiretamente na Sydney Uni, um grupo forte de pessoas versadas em Unix, muitos dos quais nos visitaram ou aqui ficaram, e que nós visitamos com certa freqüência", ele disse. Lions também fundou o AUUG, e é em parte crédito seu que o Unix é um sucesso atualmente na Austrália (o grupo recentemente celebrou a contribuição de John com o John Lions Award for Research Work in Open Systems).

Um professor visionário, uma maravilhosa ferramenta de ensino, um comentário cheio de saber e visão, um ambiente em que os estudantes talentosos tem sucesso -- tudo para termos um final feliz, certo? Sim e não. mesmo quando ele foi publicado pela primeira vez, os livros de Lions eram tecnicamente disponíveis apenas para quem tinha a licença do Unix sexta edição. O sistema operacional tinha um novo proprietário, a Western Electric, que não queria que qualquer um aprendesse como funcionava o kernel Unix por dentro.

"Na época que a sétima edição do sistema foi produzida, a companhia começou a se preocupar mais com os aspectos da propriedade intelectual e os 'segredos do negócio' e assim por diante", explica Ritchie. "Havia uma certa briga entre os que estavam no grupo de pesquisa, que viam os benefícios em ter o sistema disponível, e o Unix Support Group... Mesmo quando em 1970 o Unix ainda não era uma proposição comercial, o USG e os advogados eram cautelosos. A qualquer custo, nós da pesquisa perdemos a discussão".

A sétima licença e as subsequentes explicitamente proibiram o tipo de ensino que Lions vinha fazendo. O USG também procurou controlar a distribuição do comentário. E falhou. Mesmo naquela época, os hackers Unix não eram o tipo que reagiria a este tipo de tratamento desistindo. A sétima edição do Unix foi lançada em 1979, ao mesmo tempo que as fotocopiadoras tornaram-se acessíveis. Os engenheiros somaram dois e dois. Os livros de Lions foram copiados secretamente e passados de mão em mão. Fotocópias de quarta e quinta geração tornaram-se tesouros. Os livros eram literalmente samizdat, a literatura feita em casa pela resistência.

"Como não podíamos discutir legalmente o livro nas aulas de sistemas operacionais da Universidade, vários de nós se encontravam à noite em uma sala de aula vazia para discutir o livro", conta Reintjes. "Foi a única vez em minha vida em que eu era um membro ativo de um submundo".

Esta situação estranha perdurou por praticamente 20 anos. Mesmo quando a USG tornou-se a Unix System Laboratories (USL) e foi vendida à Novell, que por sua vez a vendeu ao Santa Cruz Operation (SCO), Richie nunca perdeu a esperança que os livros de Lions pudessem ver a luz. Ele foi de companhia em companhia. "Era, sobretudo, um material de mais de 25 anos, mas quando eles perguntavam aos seus advogados, estes diziam que não havia mal algum à prmeira vista, mas sempre havia uma atitude do tipo 'mas nunca se sabe...', e eles nunca tiveram coragem para ir adiante", ele explica.

Finalmente, na SCO, Ritchie encontrou uma mina. Ele já conhecia Mike Tilson, um executivo da SCO. Com a ajuda de seus amigos gurus de Unix, Peter Salus e Berny Goodheart, Richie trouxe pressão ao caso. "O próprio Mike rascunhou uma carta de 'permissão concedida'", diz Ritchie, "para economizar o trabalho legal do pessoal!" A equipe de pesquisa, no fim, ganhou.

Em 1996, a Peer to Peer Communications reimprimiu os livros de Lions. Foi uma ocasião única, John estava sériamente doente. Quando os livros chegaram à Austrália, Goodheart levou várias cópias para ele. "Como vocês podem imaginar, seu rosto se iluminou", escreveu Goodheart, na época. "Ele estava tremendo de deleite e todos celebramos a ocasião com champanhe. Sua saúde estava muito pior que eu pensava, mas ele podia entender que seu trabalho havia finalmente sido publicado. Ele caía no sono durante as conversas mais curtas e muito raramente dizia alguma coisa. Marianne não tinha certeza se ele estava entendendo tudo, mas eu acho que sim..." Lions perguntou o que havia acontecido com o brasão da UNSW.

"Ele realmente riu baixo quando eu li o comentário na contracapa, "O Mais Famoso Manuscrito Suprimido na História da Computação", escreveu Goodheart. "Mariane contou que fazia muito tempo que ela não o via tão feliz. A filha de John, Liz, estava lá e lhe fez uma pergunta, 'Pai, você realmente entende esta baralhada?', John respondeu 'Não', e recomeçou a rir..."

John Lions faleceu em 5 de Dezembro de 1998. Mais ou menos três anos antes de sua morte, ele havia encontrado uma caixa com a primeira edição do "Commentary and Source" no porão, um pouco danificada pela humidade, mas fora isto, boa. Ele deu um par de livros para um jovem programador que ele conhecia. Eles estavam entre os oito ou dez livros insubstituíveis que meu noivo trouxe consigo quando mudou-se para São Francisco no último ano. Ele está trabalhando no kernel do Linux agora -- um sistema rico com uma programação brilhante por que seu código fonte sempre esteve disponível.

Eu gosto de pensar que John Lions aprovaria isto.

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Este artigo foi traduzido por César A. K. Grossmann, do original que pode ser encontrado na Internet, em http://www.salon.com/tech/feature/1999/11/30/lions/index.html. O tradutor agradece a gentileza dos editores do Salon Technology, particularmente a Andrew Leonard, pela gentileza de tornar possível este trabalho. 1